Com sua licença, poética
por Carolina Gasparini
Com o perdão do trocadilho no título, vamos falar um pouco sobre licença poética? Aquela possibilidade de ter a rima perfeita sem se preocupar com o que o Professor Pasquale vai pensar sobre isso ou com o que penosamente aprendemos na escola e desejamos nunca mais pensar.
Por definição, licença poética é a permissão dada aos poetas e literários para extrapolar as normas cultas da língua portuguesa em nome da criatividade e rima. Como forma de arte, a música também apresenta essa possibilidade, mas isso não significa a completa anarquia com as regras gramaticais.
Criar versos e musicá-los (ou fazer o caminho inverso) já não é a proposta mais simples do mundo e é comum ter que realizar inúmeros ajustes e verificações. Nesse momento, muitas dúvidas surgem sobre a existência daquela palavra ou a concordância da frase. Em alguns casos, dá para corrigir sem grandes problemas, mas em outros a correção comprometeria a melodia ou a rima. Aí entra em ação a licença poética.
Limites da licença poética
Já que existe a licença poética posso escrever o que quiser e não tem problema? Não! Não é porque podemos cometer “erros” em nome da música que faremos as coisas de qualquer jeito. Existe uma tênue divisão entre escrever errado e usar a licença poética. Como saber? Conversar com o autor da canção é a forma mais simples de descobrir se ele errou de propósito ou não.
Teoricamente a licença poética não tem limites. Na poesia ela adquire as mais diversas formas e pode dar diversos formatos e interpretações ao texto, assim como ocorre na música. O limite é a imaginação do artista, que não tem fim.
A licença poética pode ser disfarçada (como no final do parágrafo anterior) ou explícita, como na música “Beija eu” de Arnaldo Antunes. Quando questionado sobre a canção, Arnaldo explicou o erro proposital: quando pequena, sua filha dizia pega eu, abraça eu, beija eu. Assim fica claro que o artista não errou por falta de conhecimento, mas sim por vontade própria.
Neologismos
Neologismo é a criação de palavras novas, inexistentes até então na língua portuguesa. O uso de neologismos está intimamente ligado à licença poética, uma vez que é uma das formas de realizar a rima e a melodia.
A criação de novas palavras pode se realizada com algo existente e ter algum significado, aludindo a algo concreto, pode retratar o sotaque de um povo específico ou ser apenas uma palavra sem sentido aparente, um fonema criado para complementar a melodia.
Por exemplo, em Asa Branca, Luiz Gonzaga utiliza palavras como “oiei”, “fornaia”, “prantação”, “farta”, deixando claro que refere-se ao sotaque do agreste nordestino.
Em Tchubaruba, Mallu Magalhães não cria significado nenhum. A palavra também não pode ser considerada uma onomatopeia pois não representa um som. É apenas um fonema.
Já Tom Zé é um dos maiores neologistas da música brasileira, junto com Caetano Veloso. São de autoria do compositor palavras como “desenrock-se” e “unimultiplicidade”.
Onomatopéias
Assim como aprendemos na escola, onomatopeias são representações gráficas de sons. Como exemplo, temos a música Natasha do Capital Inicial que diz “pneus de carro cantam, thuru, thuru, thuru, thururu”. A palavra “thuru” representa o som do pneu de um carro cantando no asfalto.
Quando utilizar a licença poética e suas variações?
Qualquer criação artística pode utilizar a licença poética, seja por qual motivo for. É possível transgredir as regras da língua portuguesa para não ferir a rima ou a melodia e também para dar um novo significado às palavras e instigar o ouvinte.
A segunda opção é mais frequente na poesia e muitas vezes precisa de muita atenção para ser interpretada. Explorar todas as possibilidades da música e da letra abre as portas de um novo mundo, com arranjos e diferenciais para todos os músicos.
Mistura Multiidiomática
Pode parecer um palavrão (no sentido de palavra grande), mas o neologismo criado às pressas aqui na redação que você vê acima é literalmente o que acontece em diversas canções e também faz parte da licença poética: a mistura de idiomas em uma mesma música.
Uma coisa é uma banda gravar algumas músicas em português, outras em inglês, outras em espanhol. Completamente diferente é você cantar metade da música em um idioma e metade em outro. Ou pior, mudar de idioma no meio do verso.
Tal mistura pode parecer novidade, mas nos idos de 1950, Earl Grant já fazia isso utilizando palavras em italiano e o resto da canção em inglês em Volare:
There is a way we can leave all the shadows behind us
Volare, oh, oh! Cantare, oh, oh, oh, oh!
No Japão esta técnica é muito utilizada, como em Forever Love, do X Japan, que mistura inglês e japonês inclusive na mesma frase:
Will you stay with me
Kaze ga sugisaru made
Mata afuredasu All my tears
Forever Love Forever Dream
Kono mama soba ni ite
Yoake ni furueru kokoro wo dakishimete
Oh Stay with me
Já em terras tupiniquins também não faltam exemplos dessa mistura multiidiomática. Caetano Veloso já fazia isso nos anos 70. Mais recentemente, Fernando e Sorocaba misturaram a língua portuguesa e a espanhola em Madri:
No puedo más mi corazón
Tá doendo aqui na solidão
No puedo más vivir sin ti
Volta logo pra São Paulo
Ou eu vou pra Madri
Como pudemos ver nesse texto (quase uma aula de português), a licença poética existe e deve ser utilizada. Como não há regras ou limites, vale usar o bom senso e não extrapolar demais para não ser taxado de ignorante pelos estudiosos.
E você leitor? O que acha dessas misturas que tornam nossa música única e deixam alguns professores de cabelos em pé? Comentem seus neologismos, onomatopeias e licenças poéticas preferidos!
Até a próxima!