Para a Justiça, sim, as igrejas devem pagar seus músicos
por Isis Mastromano Correia
A quantidade de músicos que atuam em igrejas pelo Brasil é ainda desconhecida, mas, mesmo carente de um levantamento formal, é possível intuir que estamos tratando de milhares de pessoas que tocam e cantam pelas mais diversas denominações cristãs do país.
Diante de um universo tão rico e grande de músicos, ainda assim, não há um consenso entre as comunidades religiosas capaz de responder de forma definitiva se é justo ou não remunerar seus músicos, discussão que gerou centenas de comentários, curtidas e compartilhamentos na fanpage logo depois de levantarmos essa questão aqui no blog SANTO ANGELO.
Para entender sobre o que trataremos a seguir, leia também o post: “A igreja deve pagar seus músicos?”
Enquanto as igrejas não se posicionam unificadamente sobre a questão, pesquisamos a jurisprudência e descobrimos que a Justiça Trabalhista já se manifestou sobre o dilema e respondeu que sim: o músico tem o direito legal de ser remunerado para exercer trabalhos musicais em locais de oração.
Por maior que seja a quantidade de argumentos bíblicos inteligentemente citados pelos membros de uma igreja para definir a questão internamente entre seus pares, para a “Justiça dos homens”, as atividades de músico estão fora do grupo dos trabalhos diretamente dedicados à esfera vocacional religiosa que são a divulgação da fé e a assistência espiritual aos adeptos da igreja. Assim, exercer trata-se de uma função que exige a formalização de vínculo empregatício.
Outros exemplos de atividades fora da esfera vocacional religiosa, no entendimento do Direito, são os serviços gerais e de escritório, docência, administração, segurança, tesouraria e afins. Para a jurisprudência, muitas dessas funções podem estar ocultas por trás de títulos ministeriais religiosos a fim de se evitar ônus patronais que recaem sobre as atividades amparadas pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), como é o caso dos músicos.
No entendimento legal, o exercício da música é uma das atividades exercidas mais frequentemente por religiosos na atualidade e que foge daquelas funções predominantemente básicas da divulgação da fé, sendo que em vários estados brasileiros já existem precedentes judiciais que apontam para exemplos de músicos que ganharam na Justiça o reconhecimento de seus direitos não só trabalhistas como também morais e autorais, tendo em vista que, em alguns casos, eles têm sido tomados pelas igrejas de forma indevida dos artistas.
Uma dessas histórias ocorreu no ano passado, em Minas Gerais, onde a Justiça do Trabalho condenou a Igreja Deus é Amor a pagar uma indenização de R$ 280 mil ao cantor evangélico Marcelo Silva Horta pelo uso indevido e lucro obtido sobre a obra artística do vocalista.
Conforme o processo judicial, Marcelo, que era membro da igreja e atuava em diversas outras atividades musicais do templo, recebeu R$10 mil pela autorização da gravação de 30 mil cópias do CD de sua autoria, mas, as vendas foram um sucesso e quase 100 mil cópias foram vendidas. Porém, a igreja recusou-se a pagá-lo pelas novas tiragens isso porque, de acordo com a promotoria do caso, Marcelo foi obrigado a assinar um contrato de gravação que o obrigava a transferir seus direitos autorais à igreja, ato considerado ilegal pela Justiça.
Nesse caso, segundo o juiz à frente do caso, Marcelo Vidal, da 10ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, “a ilegalidade do ato não consiste na pura e simples assinatura de um contrato de cessão e transferência de direitos autorais (porque tal possibilidade é prevista na legislação que regula a matéria pela Lei 9.610/1998, artigo 49), mas sim na comprovação de que os cantores na Igreja ré eram obrigados a fazê-lo”.
O juiz afirmou ainda que “ficou claro que o autor, como cantor religioso, não prestava serviços em prol da comunidade religiosa, de cunho espiritual, tão somente, mas sim em proveito da pessoa jurídica da igreja, para a qual empregava, sim, seus dons sacerdotais para a evangelização dos fiéis, mas com caráter oneroso, já que essa auferia lucros, em cifras consideráveis, com a venda dos CD`s por ele gravados”, explicou na sentença.
Marcelo trabalhou na Igreja Deus é Amor por três anos em cultos e também fazendo shows por todo o país, no entanto, nunca recebeu nenhuma remuneração fixa pelas atividades exercidas. A igreja alega que o cantor realizava uma atividade voluntária como forma de demonstração da própria fé e amor ao próximo não caracterizando uma relação de emprego, mas, para a Justiça, o interesse espiritual não afasta o vínculo de emprego.
Marcelo recebia uma ajuda de custo de R$ 100 a R$ 200 por apresentação, num total de R$ 1 mil a R$ 2 mil por mês. Ao reconhecer o vínculo empregatício entre músico e igreja, o juiz determinou o registro na Carteira de Trabalho entre julho de 2008 e maio de 2011, com salário de R$ 1,5 mil, na função de cantor.
Após requerer seus direitos, o músico ainda passou por situação vexatória impedindo-o de conseguir um novo emprego. Os pastores publicaram na internet que ele estava “disciplinado”, ou seja, sendo punido por uma conduta injusta com a igreja e que descumpre os preceitos da Bíblia. Essa situação fez com que Marcelo adquirisse o direito na Justiça à indenização também por danos morais.
Outras decisões expedidas pela Justiça Trabalhista em vários locais do país reforçam a tendência jurídica de encarar o músico da igreja como todos os outros profissionais do ramo que atuam no ambiente secular demostrando que o caso de Marcelo não é isolado.
Outra sentença, expedida no Paraná, em 2005, sobre o caso de um pastor que também atuava como músico, dá conta de que “a atividade de gravação de CD’s em estúdios da igreja não se insere no espectro das funções eclesiásticas, razão pela qual, uma vez caracterizados os requisitos do art. 3º da CLT, não há obstáculo ao reconhecimento de vínculo de emprego entre o pastor e sua igreja no trabalho como músico”.
Ainda outro processo, ocorrido em 2010, na Bahia, deu ganho de causa trabalhista a mais um músico que atuava na igreja. A sentença explica que a função desempenhada por ele, como músico, “embora colabore com a divulgação do trabalho da igreja, na medida em que torna mais atrativos os cultos, não se encontra necessariamente localizada no âmbito das atividades essenciais da igreja, senão por via indireta e remota: não se cuida de uma atividade vocacionada pela fé, mas com o nítido propósito de venda da energia de trabalho, com a finalidade de garantir a subsistência”.
O próprio advogado Bruno Corrêa Lamis, que defende o cantor Marcelo Horta, ex-Deus é Amor, explica que tem sido comum surgirem em seu escritório casos de músicos em situação semelhante e que esse é um cenário comum nas igrejas evangélicas.
“Cantores que se dedicam à música gospel e à igreja têm receio de buscar seus direitos na Justiça. Independente de seus deveres religiosos, o cantor tem o direito de ser remunerado pelas atividades prestadas”, declarou Lamis em uma entrevista que concedeu sobre o caso Marcelo.
Em suma, mesmo existindo uma posição legal sobre o assunto, músicos, claro, continuam tendo a liberdade de doar seu trabalho artístico para a igreja se assim desejam. Aqueles que por convicção e valores doam ou pretendem doar seus dotes musicais à comunidade, podem, então, considerar a possibilidade de firmar um contrato de voluntariado com os pastores que representam a igreja, com deveres e obrigações bem delineados e de comum acordo. Essa é uma forma de deixar clara a intenção de doar seus serviços musicais à comunidade, a fim de que, no futuro, nem igreja e nem músico se sintam lesados.
Você concorda com a posição da Justiça a respeito desse tema? Acha que a Justiça Trabalhista deva ser acionada para interferir nas relações entre os membros de uma igreja? Acha justa a posição de músicos descontentes de ingressar na Justiça em busca de seus direitos? Deixe seus comentários pra gente aqui no blog ou interaja com outras pessoas sobre esse tema na nossa fanpage.
Até a próxima!